De boca aberta, Rayo, um galgo branco, corre atrás de uma lebre pelos campos verdejantes, incentivado por Toni e sua família em uma caminhonete dirigida pelo avô Chule. Assim começa “Ciudad sin sueño” (“Cidade Sem Sono”), com um ar de celebração e liberdade vivido por uma família cigana em La Cañada Real, uma estrada de 14 quilômetros que abriga o maior assentamento irregular do sul da Europa, a poucos minutos de Madri.
O filme então corta para a cena seguinte, onde uma escavadeira destrói o telhado de uma casa enquanto as autoridades locais desmontam moradias na região. Algumas famílias, incluindo os pais de Toni, recebem ofertas de apartamentos nos arredores da cidade — lugares sem graça, mas com água encanada, luz, quartos individuais e um supermercado por perto. Chule, o patriarca da família e catador de metais, se recusa a sair. “Ouça o vento. Somos grandes como este campo”, diz, abrindo os braços. “Isso é felicidade”, afirma para Toni durante um passeio no campo. O que o garoto não sabe é que Chule já pegou dinheiro emprestado com um traficante para comprar um terreno e construir uma casa legal, vendendo Rayo como parte do acordo.
Enquanto isso, a família de Bilal, melhor amigo de Toni e de origem marroquina, se prepara para mudar para a costa francesa. Para Toni, os dias em La Cañada Real parecem estar contados. Aos 15 anos, rejeitado pela garota que gosta e visto apenas como “filho do catador de ferro”, ele está dividido sobre a mudança — assim como o próprio filme, que capta a melancolia de um faroeste outonal, uma comunidade engolida pela gentrificação e o fim de uma era de liberdade.
Estreado na Semana da Crítica de Cannes, “Cidade Sem Sono” marca a estreia promissora do espanhol Guillermo Galoe no longa-metragem. Já consagrado por seus trabalhos anteriores, como o curta “Even Though It’s at Night” (vencedor do Goya) e o documentário “Frágil Equilibrio” (também premiado), Galoe traz uma narrativa sensível e visualmente impactante, desenvolvida no programa de residência do Festival de Cannes.
Em entrevista à Variety, o diretor revelou que passou dois anos em La Cañada antes de começar a filmar, mergulhando na realidade local através de oficinas com os moradores. “Meus filmes nascem de experiências que vivo intensamente”, explica. As cenas coloridas e quase oníricas capturadas pelos personagens com smartphones refletem tanto uma fuga da realidade quanto uma conexão com as lendas contidas pela avó de Toni — histórias que ecoam as que Galoe ouviu na infância, já que seus avós vieram da mesma região que muitos ciganos de La Cañada.
No fundo, “Cidade Sem Sono” é uma despedida. “É a história de dizer adeus a um pai”, resume Galoe. Chule, figura central na vida de Toni, representa um mundo que desaparece, substituído por uma existência padronizada e desconectada. O filme não romantiza a pobreza, mas questiona o preço do progresso: “Toni se maravilha com a água saindo da torneira no apartamento novo, mas percebe o que está deixando para trás — Chule, os campos, seu cachorro, a liberdade”.
Com uma fotografia impecável assinada por Rui Poças (“Zama”), o longa equilibra realismo e estilo, usando planos-sequência que remetem à linguagem das filmagens com celulares. “A câmera é um espaço de liberdade”, define Galoe. E, assim como Toni, o espectador é convidado a enxergar La Cañada com os olhos de quem ainda sabe se surpreender.
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Este artigo foi inspirado no original disponível em variety.com
FAMÍLIA DIVIDIDA?
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