A cineasta tcheca Zuzana Kirchnerová pode estar a caminho de Cannes com “Caravan”, mas já está envolvida em novos projetos: uma minissérie sobre violência doméstica — “com uma personagem feminina muito forte” — e um longa-metragem em desenvolvimento, provisoriamente intitulado “Bodies”. “Quero que seja um projeto sensorial, que explore o envelhecimento”, revelou ela à Variety. “Gosto quando você consegue ‘tocar’ um filme. Sempre que faço um, preciso me conectar profundamente com seu tema. Tem que ser algo em que eu pense todos os dias.”
Em “Caravan”, seu primeiro longa, selecionado para o Un Certain Regard — marcando o retorno de uma produção majoritariamente tcheca à seleção oficial após mais de 30 anos —, Kirchnerová decidiu retratar suas próprias vivências como mãe de uma criança com deficiência. “Não diria que ‘me arrependo’ de ser mãe, de forma alguma. Amo meus filhos, mas às vezes sinto saudades da vida que tinha antes. Era difícil admitir isso, até para minha melhor amiga ou irmã. Mas é importante falar abertamente”, confessou. “Muitos vão comentar, mesmo que não me critiquem diretamente. É um dos últimos tabus. A sociedade acha que, ao virar mãe, você vira uma santa — principalmente se o filho tem deficiência. Comigo não foi assim. Amo meu filho, mas também queria ser cineasta, ter uma carreira. Queria ser mais do que apenas mãe.”
No filme, Ester e seu filho adolescente, David, partem em uma viagem de carroça pela Itália. “Quando comecei a escrever, era mãe solo de um filho com deficiência e outro ainda bebê. Estava em Praga, no meu quarto, e pensei: ‘Não quero fazer um filme deprimente'”, admitiu Kirchnerová. “Queria algo alegre, cheio de sol e cores. Uma história que abrisse horizontes e parecesse transcendental.” A escolha de Anna Geislerová para o papel principal ajudou a distanciar a narrativa de sua vida pessoal. “Assim, Ester ficou mais parecida com ela do que comigo. Mas há um pouco de mim em todos os personagens. Adorei criar Zuza [a nova amiga da dupla, interpretada por Juliana Brutovská Ol’hová]. Ela me lembra de como eu era com minhas amigas na juventude. A Itália é uma metáfora de um sonho de verão — e Zuza desperta a leveza em Ester.”
A diretora passou seis meses à procura do ator ideal para David, papel que acabou ficando com David Vodstrčil. “O mais engraçado é que ele estuda na mesma escola que meu filho. Estava bem debaixo do meu nariz!”, brincou. “Conheci muitas famílias durante as audições, o que foi enriquecedor — elas compartilharam histórias incríveis. Ao contrário do personagem, ele é independente e se comunica sem dificuldades, então teve que atuar de forma proposital. Ele e Anna tinham uma química incrível. Ela até o chama de ‘quarto filho’.”
Apesar do tom leve, Kirchnerová não evitou temas delicados, como a sexualidade de seus protagonistas. “Não quis esconder esses aspectos. Se falamos sobre a dignidade das pessoas com deficiência, precisamos reconhecer sua sexualidade. Elas são seres sexuais, como qualquer um”, afirmou. “Aceitamos essas crianças quando são pequenas e fofas, mas, na adolescência, as coisas ficam mais complicadas. Precisamos discutir isso. Se você é mãe de um filho com deficiência, parece que não pode ser feliz ou ter paixões. Para mim, sexo é energia, é sentir-se viva. Quando Ester tem um caso, é como se dissesse: ‘Eu quero viver. Quero algo para mim, porque já dou tanto aos outros.'”
O caminho até a finalização do filme foi longo. Kirchnerová agradece ao Torino Film Lab por tê-la feito acreditar que era possível. “Na República Tcheca, foi mais difícil. Não pelo tema, mas porque eu queria filmar na Itália. Acharam que era algo muito pessoal, mesmo eu nunca tendo feito uma viagem assim. Levei anos para conseguir financiamento. Muitos homens não se conectavam com a protagonista. Diziam que ela era ‘antipática’ e ‘indecisa’, ou que o filme precisava de um final grandioso”, relembrou. “Eu respondia: ‘Quer que eu vá para Hollywood? Lá adoram finais bombásticos!'” No fim, o projeto foi selecionado pelo L’Atelier de Cannes — onde Kirchnerová já havia vencido o prêmio Cinéfondation por seu curta “Baba”.
Agora, ela espera que “Caravan” inspire outros a retratar a deficiência sem medo. “Medo é a palavra certa. Pessoas com deficiência são como qualquer outra. Zuza é um ótimo exemplo: ela vê David como um adolescente, não como um diagnóstico. Age com naturalidade”, destacou. “Para mim, é sobre liberdade. A sociedade te prende em expectativas — principalmente se você é mãe. Fazer esse filme foi meu jeito de dizer: ‘Chega, agora vou viver do meu jeito.'”
“Caravan” foi produzido por Dagmar Sedláčková da MasterFilm, com coprodução da Nutprodukcia (Eslováquia) e Tempesta (Itália). A Alpha Violet cuida das vendas.
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Este artigo foi inspirado no original disponível em variety.com
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