Raoul Peck, que estará no Festival de Cannes no próximo mês com seu documentário sobre George Orwell, Orwell: 2+2=5, fez um alerta contundente sobre o avanço global do autoritarismo durante o festival Visions du Réel, onde é o convidado de honra. O filme, que estreará na seção Première de Cannes, foi produzido em parceria com a família Orwell e explora os últimos meses e o legado do escritor britânico, incluindo seu romance icônico 1984. Thierry Frémaux, diretor de Cannes, destacou em coletiva de imprensa que o documentário examina “a força e a atualidade das ideias de Orwell, além de sua previsão sobre o rumo das sociedades se não cuidarmos delas. Isso foi nos anos 30 e 40. Não demos a devida atenção, e talvez estejamos mais perto disso do que imaginamos”.
Em uma masterclass lotada no Visions du Réel, Peck traçou um paralelo assustador entre os alertas de Orwell e o cenário político atual. “Falei sobre o ‘Novilíngua’ de Orwell. As palavras perderam o sentido. A ciência não significa mais nada. Não há verdade, só ‘fatos alternativos’. Vivemos em um mundo invertido, onde ninguém diz nada. Estamos aterrorizados. O terror age devagar”, disse Peck, que fugiu do Haiti aos 8 anos para escapar da ditadura de Duvalier. “Eliminavam quem não apoiasse o regime abertamente. Quem viveu sob uma ditadura reconhece os sinais de hoje: jornalistas abaixando a cabeça, ninguém ousando dizer que o rei está nu ou falando absurdos.”
Em entrevista à Variety em março, Peck criticou o governo de Donald Trump, afirmando que o mundo está à mercê de “pessoas loucas” que arriscam milhões de vidas, comparando o manifesto pró-Trump Project 2025 ao Mein Kampf. A desconstrução do racismo estrutural é central em sua obra, como no indicado ao Oscar I Am Not Your Negro (2016), baseado em textos de James Baldwin, e na série vencedora do Peabody Exterminate All the Brutes (2021), que analisa violência racial e colonialismo em escala global. Questionado se teve liberdade total na HBO, Peck respondeu: “Sabia que poderia ser meu último filme nos EUA, mas como atacar uma obra que aborda o Holocausto, a escravidão, o genocídio indígena e mostra que tudo está conectado? Pergunto no filme: ‘Make America Great Again’ — quando exatamente a América foi grande?” A plateia aplaudiu.
Crítico ferrenho de Trump, Peck afirma que sempre assume a responsabilidade por suas palavras e, quando sua liberdade criativa é ameaçada, simplesmente se realoca. “Precisava mostrar o que via, desconstruir narrativas dominantes. Temos que criar um novo mundo para a próxima geração. Não tenho um plano, só fios que, entrelaçados, oferecem outra perspectiva”, disse. “O cinema é uma missão de liberdade e risco. Sempre faço filmes como se fossem o último. Achei que Exterminate All the Brutes poderia ser meu adeus aos EUA.”
Peck, que transita entre documentário e ficção, também lamentou o estado atual do cinema não ficcional: “É uma catástrofe. O documentário foi transformado pelo dinheiro e pelos streamers. Muitos acharam que ficariam ricos, mas não entenderam que documentário não é produto. Exige paciência e compreensão.” Ele acrescentou: “Ficou difícil conseguir financiamento sem condições. Trump atacou instituições que apoiam cineastas independentes, especialmente projetos de ‘diversidade’ — ou seja, negros, mulheres, LGBTQ+. A bolha do documentário estourou. Plataformas só querem true crime, comédia, horror e escândalos de celebridades.”
Orwell: 2+2=5 marca a quarta estreia de Peck em Cannes. Sua primeira participação foi em 1993 com The Man by the Shore, em competição. Lumumba (2000), sobre o assassinato do primeiro-ministro do Congo, foi exibido na Quinzena dos Realizadores. Em 2012, integrou o júri principal e, em 2023, venceu o Œil d’Or de melhor documentário com Ernest Cole: Lost and Found. O novo filme é produzido pela Jigsaw Productions de Alex Gibney e pela Velvet Films de Peck, com Neon cuidando das vendas na América do Norte.
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Este artigo foi inspirado no original disponível em variety.com