Quando o artista e cineasta Johannes Büttner reencontrou um velho colega de escola nas redes sociais após anos sem contato, sentiu que era um daqueles momentos de puro acaso. Ele já vinha retomando laços com outro amigo de infância, o também cineasta Julian Vogel, com quem planejava um filme sobre o avanço do autoritarismo no mundo. E, por uma dessas ironias do destino, o amigo redescoberto online havia se tornado um guru da saúde cujas práticas estavam profundamente ligadas a ideologias de extrema-direita. Desse reencontro improvável nasceu “Soldiers of Light”, documentário que estreia esta semana no festival Visions du Réel.
O filme acompanha David, também conhecido como “Mister Raw”, uma figura central no crescente cenário de “curandeiros” alternativos com vínculos ao extremismo político. Ao se instalarem na casa-comuna de David, os cineastas voltam sua atenção para um de seus discípulos, Timo, que buscava curar seus delírios psicóticos com suplementos alimentares e jejum. Tragicamente, o desfecho dessa jornada é o oposto do que ele esperava.
Em entrevista à Variety, Büttner conta que percebeu o crescimento de movimentos como o de David logo após a pandemia, durante os protestos contra as restrições governamentais. “Eram forças muito presentes na sociedade, mas com um discurso utópico que historicamente associamos à esquerda — só que, no caso, vinham da extrema-direita”, explica. Ao reencontrar David, ficou surpreso com sua abertura para o projeto: “Foi estranho. Crescemos juntos, mas agora ele vivia uma realidade ideológica que me era completamente estranha”.
Vogel, que já havia investigado o extremismo em sua trilogia Einzeltäter, juntou-se a Büttner para adotar uma abordagem observacional — ele na câmera, Büttner no som, mantendo a equipe mínima para não interferir no ambiente. “Debater com teóricos da conspiração não levaria a lugar nenhum. Preferimos entender o fenômeno pela observação”, diz Vogel. A dupla passou semanas construindo confiança com o grupo, encontrando pontos em comum como o vegetarianismo, enquanto estudava a estética visual caótica das selfies e gravações que David e seus seguidores produziam incessantemente.
A preocupação em não amplificar a mensagem de David foi constante. “Nosso editor foi crucial para expor a hierarquia por trás do discurso libertário deles”, afirma Büttner. O foco na história de Timo surgiu como contraponto, mas sua morte prematura transformou o filme em um drama burocrático e humano, com os cineastas mediando diálogos dolorosos entre familiares e instituições.
Para Vogel, o filme não se limita a alertar sobre os perigos do autoritarismo — algo já óbvio em figuras como Trump e Javier Milei —, mas revela como ele se alimenta das fragilidades do neoliberalismo. “Vivemos numa sociedade que nos exige sermos a melhor versão de nós mesmos só para sobreviver. Timo foi seduzido pela promessa de um futuro melhor, assim como artistas são seduzidos por projetos que podem nunca dar retorno”, reflete. A esperança é que o público veja os personagens além do rótulo de “outro”.
As vendas internacionais de “Soldiers of Light” estão a cargo de Karoline Henkel, da Woodwater Films.
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Este artigo foi inspirado no original disponível em variety.com